A história de tantas

Ana Bivar
5 min readJun 2, 2024

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Tenho pensado se deveria escrever sobre você. Talvez seja uma forma de afastar seus fantasmas que me assombram há meses em sonhos. Por outro lado, é colocar em evidência quem eu só quero esquecer. Definitivamente você não merece nenhuma de minhas palavras, nem o meu esforço e tempo de escrever. Mas eu mereço a minha cura, e essa sempre foi a minha forma de me curar. E eu não vou mais abrir mão de transbordar em palavras por ninguém, e com certeza não por você.

Já faz mais de um ano, mas só de pensar naquele dia meu coração acelera. Me falta o ar. Me comprime a alma inteira. Mas o tamanho da dor que você causou não começa quando você me invadiu, começa quando você me encantou. Seu sorriso leve, seu jeito de parecer gentil, leve e profundo ao mesmo tempo, sua forma de parecer escutar atentamente com olhos brilhando como quem está absorvendo cada segundo me deixou totalmente apaixonada. Tudo o que me encantou em você foi exatamente aquilo que me fez demorar tanto tempo à perceber as violências e manipulações que você fez não só a mim, mas à tantas mulheres fortes e incríveis com quem cruzei. Seu sorriso é capaz de derreter nossa força interna e você sabe disso. Sua cor de pele te deixa eternamente menino, justificado, sendo defendido pelas mesmas pessoas que você machuca. Fui uma delas. E não me orgulho.

Foram muitos os avisos, os sinais, e ainda assim fui contra tantas coisas que acredito para encobrir tudo o que tem por trás de palavras aparentemente tão gentis. Em nossa última conversa, enquanto te olhava eu tive certeza do seu arrependimento e do seu espanto com minha dor. Mas quando ouvi só o áudio da conversa que gravei, percebi que o que o seu rosto me transmitia, não condizia com suas palavras. Em suas palavras ditas com voz mansa e sotaque acolhedor, continha apenas descrença com o que eu trazia. Você rebateu tudo o que eu disse e eu não fui capaz de perceber porque seus olhos diziam outra coisa. Sempre me julguei tão esperta e fui manipulada novamente, mesmo depois de saber desse seu poder. Acho que nunca me senti tão fraca. Tão descrente de mim, de tudo o que sei, acredito, entendo de mundo. É como se eu tivesse entregado nas suas mãos tudo o que me fazia forte.

E por falar em mãos, foram essas mesmas que me invadiram. Essas que levaram de mim o que me fazia forte com “carinho” não solicitado e não permitido enquanto eu apenas dormia. Talvez eu tenha passado tanto tempo da minha vida me defendendo de violências claras e óbvias, que não tenha percebido que violência também chega com toque leve. Na hora senti angústia, mas continuei como se aquela violação fosse normal, e como se meu corpo estivesse programado para dar prazer ao outro. Calei qualquer desconforto, mas mesmo que sem perceber, tudo já tinha mudado dentro de mim.

E racionalmente dentro de uma escala de violências sei que minha história não é quase nada, está ali um pouco depois da linha tênue do que é ou não abusivo. Mas mesmo tendo essa consciência é exatamente por conta desse leve sussurro que se fez tão difícil conseguir gritar. E depois de todo o esforço em conseguir gritar, entendo e acolho aqueles que não acreditaram que de um sussurro de violência possa nascer um grito de socorro. Mas nasce, exatamente por que é de um sussurro como um “shhhh” que se cria tanto silenciamento sufocante.

Aquela noite demorou a voltar à minha mente. E antes que eu pudesse ter clareza de que aquilo não era certo te trouxe pra perto, pra dentro, pra quem eu amava. Mas aquilo que meu cérebro ainda não tinha entendido, meu corpo já repulsava. Te afastei sem entender o porquê. Meu corpo me alertou, e eu soube que algo não estava certo.

Primeiro me culpei. Fiz comigo mesma o que condenaria à qualquer amiga que me contasse a mesma história. Como é fácil condenar à nós mesma. Busquei de todas as formas que eu estivesse errada, que fosse só um mal entendido. Mas meu corpo insistiu em me avisar. O coração apertado e as lágrimas que surgiam sempre que aquela cena se repetia incessantemente. E à cada repetição eu tentava perceber algum detalhe que pudesse ter passado despercebido que pudesse te justificar, e fazer com que aquela dor fosse de fato infundada.

Mas cada detalhe lembrado só confirmava o que eu não queria ver. Até que tomei coragem de contar para alguém que me ouviu até o fim, cada detalhe lembrado, remoído, repassado. Cada culpa que eu me imputei, cada defesa que eu te fiz. E quando ouvi com calma, serenidade e indignação a frase “Amiga, isso foi um abuso.” uma lágrima pesada e quente escorreu e foi como se tudo silenciasse. Eu sabia que todas as desculpas que dei para mim mesma não eram verdadeiras. O silêncio era o luto das dúvidas do que tinha acontecido morrendo dentro de mim.

Nesse momento é como se o mundo inteiro desabasse na sua cabeça. O momento que você percebe que a culpa não foi sua. E que já não há mais desculpa pra justificar o injustificável. E que sim, aconteceu com você também. A partir disso, nasceu em mim uma força que eu não conhecia. A força para contar a minha história, que infelizmente também é a história de tantas. Só hoje, tanto tempo depois e já tendo conseguido sobreviver a isso, entendo que tive coragem o suficiente. Não foi a maior, não foi necessariamente expressada da melhor forma, não foi por todas as instâncias que deveria, mas foi o suficiente para seguir, para falar, para gritar socorro. E ainda que meu grito não tenha sido alto o suficiente para fazer com que todos que eu amava acreditassem e me amparassem, quem ficou ao meu lado foi o suficiente pra que eu não enlouquecesse incrédula da minha própria vivência.

Essa pode ser a minha história. Como também pode ser a de outra mulher. Pode ser a história da mão que percorre um corpo dormindo, do corpo que adentra outro corpo entorpecido, do toque em outro corpo que te viola com o olhar, do silêncio diante das vozes que contam trêmula a sua história de dor, da descrença perante o grito de socorro, do corpo que te imobiliza e te invade, das intenções de horror que ficam apenas no quase, do não que não é respeitado, do beijo roubado, da roçada disfarçada em transporte lotado. Essa pode ser a minha história, mas pode ser só a história de tantas que foram silenciadas.

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Ana Bivar

“Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.” Fernando Pessoa